Entre palavras e silêncios

O som do teclado ecoava pelo apartamento pequeno de Miguel. O barulho da chuva no telhado e a fumaça da caneca de café eram as únicas companhias da sua noite solitária. Ele, agora com quarenta e cinco anos, separado, já se acostumara a esses dias calmos, mas com uma certa frequência sua mente vagava para os tempos de juventude. O som da chuva sempre trazia Gabriela, sua paixão de juventude, à memória. A chuva era um gatilho para uma lembrança constante, a da vez em que foram pegos por uma chuva rápida enquanto caminhavam para o carro. Tiveram que correr para alcançar o “possante” e a imagem dela, se enxugando e sorrindo no banco do carona do seu velho fusquinha, parecia estar tatuada em sua memória.

Gabriela, por sua vez, estava em um pequeno estúdio fotográfico em São Paulo, um hobby que mantinha desde que se mudou para a terra da garoa. Após o divórcio, havia redescoberto um prazer simples que há muito deixara para trás, o prazer da leitura. Com frequência aproveitava o estúdio para se debruçar em seus livros. Adorava a textura, o cheiro, passar a mão entre as páginas e claro ler as histórias, aventuras e o conteúdo neles contidos. Mas em alguns momentos, entre as páginas dos livros, ela também se via presa às lembranças de um passado nostálgico.

A cidade onde se conheceram estava longe, assim como os sonhos que partilharam um dia. Ambos partiram em busca de oportunidades, ou talvez fugindo de suas raízes. O som das gotas o levou de volta àquela sessão de cinema lotada, onde ele e Gabriela assistiram “O Último Samurai” e depois planejaram, entre risos e fantasias, uma vida no Japão. A terra do sol nascente lhes parecia tão distante quanto impossível naquela época.

Com a nostalgia Miguel lembrou de um fórum de discussão sobre música japonesa, que há muito não participava, um passatempo que cultivava desde os tempos da adolescência. Entre comentários e recomendações, um perfil chamou sua atenção: Cindy 88. Um arrepio percorreu seu corpo, mas pensou que talvez fosse apenas coincidência, sua imaginação.

— Não…, não pode ser ela, pensou Miguel.
— Mas não é possível! Insistiu na incredulidade.
— O que eu faço agora? Esqueço, ou pago para ver?

Levantou; abriu a geladeira; deu voltas pela casa; foi ao banheiro; lavou o rosto e encarou o espelho.

— Miguel, olha lá o que você vai fazer. Fique na sua. Eu sei o que você está pensando. Melhor não.

Mesmo relutante, decidiu responder a uma “thread” aberta por Cindy 88, sobre uma banda que ambos costumavam ouvir juntos. Embora responder, ou dar uma opinião naquele tópico lhe fosse relativamente fácil, ele foi extremamente cauteloso com as palavras que usou na resposta.

Gabriela, imediatamente reconheceu aquele jeito de escrever, cheio de referências sutis a bandas e músicas antigas, as nuances e as mensagens veladas do texto. O coração dela acelerou ao perceber que quem lhe respondera, provavelmente seria o Miguel, o Miguel do seu passado. Contudo, em vez de responder logo, hesitou, e passando o dedo sobre a tela do celular, ficou pensativa sobre se deveria mesmo reabrir aquela página do seu passado. Depois de dias de incertezas, e ignorando totalmente o assunto do fórum, enviou uma resposta breve e formal, como quem tenta manter uma distância segura.

“Por acaso você não é o Miguel, Miguel Miranda? Eu sou a Gabriela, Gabriela Lima, lembra de mim?”

Miguel, que agora monitorava as notificações do fórum com mais frequência, viu a notificação e teve certeza tratar-se da Gabriela, sua Gabriela. levou mais de uma semana para responder. Embora esperasse por esse contato há anos, ficou bem reticente em avançar. Lembrou de todas as noites que passou em claro após o término, revivendo cada conversa, cada despedida. Não queria abrir a porta para o passado, mas também não conseguiria simplesmente ignorar.

“Estou bem, e você? Faz tempo, né?”, respondeu Miguel, timidamente.

Começaram a conversar no privado do fórum, mas as primeiras trocas de mensagens foram curtas e cautelosas, como se ambos pisassem em um campo minado. A conversa girava em torno de banalidades: trabalho, hobbies, músicas e uma ou outra referência a amigos comuns. Nenhum dos dois queria ser o primeiro a quebrar a barreira e falar sobre o passado, sobre o passado deles.

Gabriela sentia um nó na garganta toda vez que ele mencionava algo sobre sua vida atual, pensando em como as coisas poderiam ter sido diferentes. Mas, ao mesmo tempo, sentia medo de mencionar qualquer coisa que pudesse afastá-los novamente, ou abrir velhas feridas.

Miguel, mantinha uma postura defensiva. Cada mensagem que enviava era escrita de forma minuciosa, como se quisesse revelar alguma intenção oculta, mas de forma implícita, sutil, quase imperceptível. Lembrava-se de como se sentiu perdido quando Gabriela decidiu mudar de cidade, e não estava disposto a reviver aquilo novamente. Mas ao mesmo tempo, sentia que algo em sua vida estava acontecendo outra vez, despertando sentimentos que ele acreditava estarem enterrados há muito tempo, que não podiam mais ser acessados, ou vividos.

Depois de algumas semanas de mensagens esporádicas, Gabriela sugeriu, de maneira despretensiosa:

“Seria legal a gente se encontrar em algum momento… quem sabe em Tóquio, como a gente sempre sonhou, o que você acha?”

Assim que enviou a mensagem, sentiu uma onda de arrependimento.

Estaria sendo precipitada? Não deveria ter sugerido isso, pensou Gabriela.

Mas, ao mesmo tempo, havia uma parte dela que queria desesperadamente ver se ainda poderia haver algo entre eles.

A resposta de Miguel demorou mais do que o normal. Quando finalmente chegou, era curta e fria:

“Talvez seja interessante, mas não sei se é uma boa ideia”.

Ao ler a resposta, Gabriela fechou os olhos, respirou fundo e desabou no sofá. Ela sentiu que a chance da reaproximação havia passado. Mas então, alguns meses depois, uma nova mensagem de Miguel chegou:

“…Irei para Tóquio no mês que vem, a serviço, se quiser mesmo ter aquele encontro, a gente pode se ver por lá. O que acha?”.

Mais algumas mensagens trocadas e então combinam de se encontrarem em um café próximo ao icônico Park Hyatt Hotel. Miguel gostaria que o encontro fosse no hotel, mas ele encontrava-se em reforma. Embora ambos estivessem ansiosos e excitados pelo encontro, os compromissos profissionais, o número menor na troca de mensagens e a rotina arrefecem as sensações e os sentimentos.

E num piscar de olhos, o tempo passa e eles partem para Tóquio, ela de São Paulo e ele de Porto Velho. Logo, a cidade de Tóquio pulsava ao redor deles, como um sonho distante que agora se tornava realidade.

Gabriela chegou primeiro ao café. Estava frio, e o vento cortante trazia consigo uma sensação de renovação, como se algo estivesse prestes a mudar. Ela se ajeitou na cadeira, olhando ao redor, tentando controlar o nervosismo que seu corpo insistia em denunciar. Miguel chegou alguns minutos depois, com as mãos nos bolsos e um olhar que misturava expectativa, curiosidade e receio.

Ele a reconheceu de longe, mas ao vê-la sentada ali, com os olhos perdidos nas ruas de Tóquio, sentiu uma pontada de dor. Era como se visse a Gabriela de tantos anos atrás, mas com traços de uma nova versão, mais madura, quase inalcançável. Ele não sabia o que esperar, contudo ela ainda continuava bela, radiante, iluminando a tudo e a todos ao seu redor.

Ele se aproximou, mas ela não percebeu de imediato, pois estava a olhar através da janela da cafeteria.

— Posso sentar aqui, ou este lugar está reservado? Falou Miguel em um tom brincalhão.

Ela virou-se, levantou a cabeça e seu rosto parecia confuso, mas assim que reconheceu Miguel, abriu um sorriso enorme, genuíno, transbordando felicidade. Ele por sua vez, ao ver aquele sorriso franco, generoso, aquela boca carnuda e o batom encarnado sentiu que valeu a pena a viagem e a espera por tanto tempo. Após um longo abraço sentaram-se e não sabiam o que fazer, o que dizer, apenas se entreolhavam sem sustentar o olhar e sorriam timidamente.

A conversa começou embaraçosa, mais parecia uma troca de notícias do que um reencontro de duas pessoas que tinham muito a dizer.

Conversaram sobre suas viagens, vida profissional, sobre a cidade que ambos sonhavam conhecer, sobre o que mais gostavam em Tóquio.

Mas havia uma barreira invisível entre eles, uma cautela que impedia de tocar nos temas que realmente eles queriam falar.

Depois de algum tempo, o assunto começou a minguar, e os silêncios se tornaram mais frequentes. Gabriela olhou para a xícara de café nas mãos, incapaz de encarar Miguel diretamente. Sabia que se não falasse algo agora, talvez perdesse a oportunidade para sempre. Porém antes dela se manifestar, Miguel disse para darem uma volta, afinal estavam no local que sempre sonharam estar e deveriam aproveitar. Ele pagou a conta e saíram.

Fizeram papel de turistas, estavam admirados com o número de pessoas nas ruas, com as luzes, com as modernidades, com as excentricidades e por que não com o tradicional que a cidade trazia. Pareciam até os velhos tempos, pois estavam genuinamente se divertindo. Tiveram por alguns instantes uma felicidade verdadeira. Contudo o silêncio voltou a imperar e Gabriela decidiu que deveria falar e enquanto passavam por uma praça pediu que sentassem em um banco.

— Sente aqui, Miguel. — Gabriela fez um gesto para o banco ao seu lado. — Vamos tocar num assunto que tanto eu quanto você estamos evitando desde que nos encontramos naquele fórum, meses atrás. — Ela hesitou, — Nem sei por onde começar… Eu sei que deixei um vazio em você quando parti.

Miguel permaneceu em silêncio, com os olhos fixos no horizonte. Um misto de não sei o que dizer, e queria dizer muita coisa.

— Eu nunca quis te machucar, Miguel. Eu só… eu… só não sabia como lidar com tudo naquela época. Tive medo. Estávamos apenas começando a viver. E eu sei que isso não é desculpa, pensei em você muitas vezes… mas, não consegui continuar. Com o tempo não consegui mais te procurar. Na verdade até te procurei, mas você havia mudado e ninguém sabia, ou quis me dizer onde você estava.

Ele respirou fundo, sentindo uma mágoa antiga ressurgir, mas também uma sensação de alívio por finalmente ouvir o que sempre desejou ouvir.

— Você foi embora e me deixou. E depois, simplesmente disse não querer mais. Eu fiquei tentando entender onde eu errei, o que eu fiz, ou o que eu não fiz. Concordo com você que éramos muito novos. Com o tempo, eu consegui
entender a sua decisão, mas isso não tira o que eu passei.

Miguel suspira, olha carinhosamente para Gabriela e continua.

— Agora, te vejo de novo, aqui na minha frente. Te sinto uma vez mais próxima a mim. Só faltou você estar usando o mesmo perfume… — Miguel respirou fundo, seu olhar fixo em algum ponto distante. — E isso está mexendo muito comigo…

Gabriela mordeu o lábio, sentiu um aperto no peito, segurou as lágrimas que queriam escapar.

— Depois de todos esses anos, nunca soube como te pedir perdão de verdade. — Ela olhou para as próprias mãos, que tremiam sutilmente. — Será que ainda há algo a salvar aqui?

Ela se aninhou no peito de Miguel e ele a envolveu com o braço. Os dois ficaram em silêncio por um longo tempo, com a cidade de Tóquio como pano de fundo. Gabriela esperava que Miguel dissesse algo que os tirasse daquele impasse, mas ele apenas contemplava o nada, absorto em seus pensamentos, como quem busca respostas em algum lugar distante.

Finalmente, ele suspirou e a olhou nos olho pela primeira vez depois de tanto tempo.

— Eu não sou mais aquele garoto, Gabriela. E você também não é a mesma. Pensei que queria uma segunda chance, mas agora… — ele balançou a cabeça. — Estamos carregando fantasmas diferentes dos que tínhamos aos vinte anos.

Gabriela abaixou o olhar. Seus dedos apertaram o tecido do casaco, enquanto um sorriso triste e resignado se formava em seus lábios. Ele estava certo.

— Talvez a gente tenha que aceitar que aquele capítulo acabou. Que era um sonho bonito, mas que já não somos mais os mesmos, disse Miguel, enquanto dava um sorriso triste e melancólico. Mas, de qualquer maneira, está sendo bom te ver uma vez mais. E, de alguma forma, acho que isso me ajudou a entender que eu também preciso seguir em frente.

Gabriela concordou com a cabeça.

Após mais um longo silêncio, levantaram e caminharam de mãos dadas, mas sem trocarem palavras, cada um absorvido em seus pensamentos. Acabaram por retornar ao café onde haviam marcado o encontro. Era algo em torno de vinte e uma horas, hora local, e o frio do outono já incomodava bastante.

Miguel levou Gabriela ao seu hotel e no caminho lhe comprou uma rosa amarela, repetindo um gesto que fizera quando começaram a se relacionar.

Miguel e Gabriela se despediram no saguão do hotel, cada um carregando a lembrança daquele encontro como um ponto final que nunca tiveram antes. Miguel a abraçou por um longo tempo. Uma vez mais sentia o seu corpo, o seu calor. Mas dessa vez o abraço se parecia mais com um gesto de agradecimento do que uma tentativa de reatar algo. Gabriela se permitiu chorar, mas era um choro leve, de alívio. Miguel, então lhe deu um beijo na testa e lhe sussurrou, eu sempre te amarei. E foi embora.

Na manhã seguinte, Gabriela partiu para o aeroporto, observando a cidade de Tóquio pela janela do táxi e sentindo uma estranha sensação de liberdade. Era como se finalmente tivesse fechado a porta que ficou por tanto tempo aberta.

Miguel, por sua vez, ficou mais uns dias em Tóquio, por conta do serviço que fora prestar. Enquanto vagava pelas ruas da cidade, que ambos haviam sonhado em conhecer, parou diante de uma pequena loja de souvenirs e comprou um boneco do Doraemon que os dois tanto amavam.

Naquela noite, sozinho em seu quarto de hotel, assistiu alguns vídeos do Doraemon e se divertiu novamente com o Nobita, que o levou de volta para uma época em que tudo parecia ser mais simples e qualquer problema bastava ligar para Gabriela e tudo se resolvia.

De volta ao Brasil, Gabriela e Miguel seguiram suas vidas, mas com algo diferente em seus corações. Não era um amor renascido, mas um alívio por terem finalmente encerrado uma história que estava em aberto. E assim, seguem em frente, cada um à sua maneira, carregando as memórias e as marcas do que foi — e do que nunca pôde ter sido.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Post Author

Thomas Mark

It is a long established fact that a reader will be distracted by the readable content of a page when looking at its layout.

Popular Articles

Top Categories

Tags

Entre palavras e silêncios – Portal 42