Logo saberei

Garota na rua

Nunca entendi o porquê da minha mãe ter me entregue àquele casal. Eu era apenas uma criança, indefesa, assustada, cheia de medos. Não houve sequer um dia que não me questionasse a respeito disso. Com o tempo passei a sentir raiva, mágoa, ranço e aos poucos o sentimento foi se intensificando até virar ódio…

Mas mesmo assim todo santo dia eu lembrava da cena de ser entregue a estranhos. De ser deixada à própria sorte, de ser abandonada. O casal que me adotou era muito paciente e entendeu minhas dificuldades de adaptação.

Com o tempo fui baixando a guarda e passei a chamá-los de pai e mãe. Contudo mantinha em meu peito um questionamento insolúvel, uma angústia que me corroía. Por que minha mãe me abandonou?

A despeito disso, acabei por ter tido bastante sorte, uma vez que meus pais adotivos são alemães. Então aproveitei cada oportunidade que tive em terras germânicas. Tornei-me Engenheira Química e acabei tornando-me Diretora de uma das maiores empresas do segmento de agronegócio na Europa.

Tenho pais amáveis e carinhosos que me dão suporte em praticamente tudo que faço, todavia, sempre senti falta de algo. Sempre quis ter a pergunta que me perseguiu a vida toda respondida.

De tanta raiva e desprezo que fiquei da minha mãe biológica nunca quis ter nenhum tipo de contato com ela. Embora meus pais adotivos insistissem para que eu o fizesse.

Era um misto de raiva e curiosidade. Tristeza e dó. Isso me consumiu por muito tempo até que recebi uma carta dos familiares de minha mãe. A carta dizia que ela estava desenganada e gostaria de me ver, de saber como eu estava, de ver a mulher que me tornara.

Aquilo mexeu comigo, fez meu sangue latino ferver. Quem ela pensa que é para me procurar como se nada tivesse acontecido? Para saber quem eu me tornei? Agora em seu ocaso é que ela lembra que um dia eu fui sua filha?

Após alguns dias remoendo todo o rancor guardado por décadas daquela mulher, decidi ir ao seu encontro. A mim pouco importava se ela estava prestes a morrer, queria respostas.
E assim parti para o Brasil, para a cidade de Manaus, minha terra natal.

Deixei meu país muito pequena e não guardo memórias afetivas do local, então não esperava ter grandes emoções quando finalmente estivesse em território manauense.

Assim que desembarquei senti aquele calor terrível, algo surreal. Como as pessoas conseguem sobreviver num lugar como este? Talvez o cansaço da viagem somado a raiva que sentia de minha mãe me fez ser estúpida e preconceituosa. Cada local tem seus prós e contras, logo o que não é comum a mim é muito natural ao nativo, além do mais eu sou manauense, não posso negar as minhas origens.
O seu Antenor, pai da minha mãe, portanto meu avô, me esperava no aeroporto. Homem simples, castigado pela vida, me olhava com admiração, medo e curiosidade. Esboçou querer me dar um abraço, mas desencorajei-o e deixei bem claro que ele era um total e completo estranho a mim. Ele ficou constrangido, mas não me importei.

Fui até a locadora de carro, no aeroporto, pegar o veículo que havia alugado ainda na Alemanha. Pedi o endereço ao seu Antenor e seguimos para a casa de minha mãe biológica, queria logo resolver aquela situação. Ela ouviria poucas e boas, pouco me importava a sua condição atual.

Ela morava em um bairro de periferia, bem afastado com ruas não asfaltadas, esgoto a céu aberto e pobreza, muita pobreza ao redor. Precisei parar o carro bem distante da casa, uma vez que ela morava em um beco e o único acesso era a pé mesmo.

Não pareço uma alemã, na verdade sou uma típica amazonense, mas minhas roupas, minha postura me denunciavam e todos ficavam nos olhando. Seu Antenor parecia conhecer a todos, pois onde passávamos ele era cumprimentado. Eu por outro lado era a novidade, quem seria aquela que está ao lado do seu Antenor?

Após uma caminhada de uns dez minutos chegamos a casa de minha mãe. A casa dela ficava nos fundos da casa do seu Antenor, um puxadinho, como dizem no Brasil. A casa era bem humilde, era de madeira, tinta desbotada, quase sem móveis e os que haviam eram de longa data. Seu Antenor me levou até o quarto dela e nos deixou a sós.

Ela praticamente jazia na cama. Muito magra, sem força alguma para levantar, apenas me acompanhou com os olhos quando sentei à sua beira. Esforçou-se para levantar, mas eu disse que não precisava, então passou a mão pelo cabelo como quem tenta melhorar a aparência.

Como muito esforço ela disse: — Deus te abençoe, minha filha, e estendeu a mão para mim. Uma vez mais fui estúpida e não retribui. Após isso, uma lágrima escorreu por seu rosto.

Ficamos mudas por alguns instantes, talvez um minuto, o minuto mais longo da minha vida. Ela quebrou o silêncio e com muito esforço disse que eu era como ela imaginava que eu fosse.

Continuei calada, pois não sabia o que dizer. Fui armada até os dentes e não soube o que fazer quando vi aquela mulher definhada e tão fragilizada na minha frente. Percebendo o meu silêncio e ainda com muito esforço começou a falar.

— Não precisa dizer nada, sei que você deve guardar muitas mágoas de mim, eu sei que te abandonei, e que você está coberta de razão em me desprezar. Sei também que te fiz sofrer bastante, e isso é provavelmente o único motivo de você vir ter comigo, você veio para obter respostas.

— Isso mesmo, respondi com a voz trêmula. Na realidade eu tremia por completo, aquela mulher me trouxe ao mundo e eu aqui a desprezá-la. Era uma mistura de raiva, pena, angústia e ternura. Estava muito confusa, não esperava encontrá-la tão diminuída, tão vulnerável.

— Você casou? Tem filhos?

— Não, nem casei e nem tenho filhos, respondi de forma seca e fria.

— Compreendo… então nada que eu fale vai servir de explicação.

— Experimente, lancei o desafio. Então após um longo suspiro ela falou…

— Olhe ao seu redor, veja onde moro, veja as condições miseráveis em que me encontro. Você acha que eu queria um futuro desses para você?

— Mas que desculpa esfarrapada você arrumou? Você poderia ter lutado por mim, poderia ter buscado alternativas. Eu estaria do seu lado e juntas nós estaríamos em uma situação melhor.

— Como eu disse, você não irá entender. Mas não me arrependo de nada que fiz e faria tudo novamente. Veja só a mulher que você se tornou, se tivesse ficado comigo estaria em uma situação parecida com a minha ou até pior, vai saber.

— Para mim basta, já obtive a resposta que queria e não gostei. Espero nunca mais vê-la ou ter notícias suas, adeus, disse eu muito brava.

— Deus te abençoe, minha filha e obrigado por vir, agora posso morrer em paz. E pode ter certeza que quando você fizer a passagem estarei te esperando. Te amo minha menina.

Saí de lá possessa, nem olhei para trás e tratei de retornar para minha vida na Alemanha.

Hoje, quase trinta anos após esse encontro, estou aqui em fase terminal de um câncer de útero. E por ironia do destino é do mesmo tipo que ceifou a vida de minha mãe, talvez seja hereditário.

Nesses anos todos acabei por não constituir família, não casei e nem tive filhos. Porém, o tempo me ensinou a entender as razões de minha mãe. Pena que ela já havia partido, quando finalmente entendi as suas razões, mas não pude dizer isso a ela.

Será que de fato ela estará me esperando quando eu morrer? Espero que sim, pois somente assim poderei pedir seu perdão e quem sabe até poder abraçá-la.

Logo saberei…

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Thomas Mark

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